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Gisela

… mas antes de falar sobre Gisela, eu gostaria de contar uma história:

A resiliência do amor

Na escola, eu costumava odiar as aulas de Física. Sempre que a aula começava e eu abria aquele livro de Física de 400 páginas, cheio de teorias e fórmulas, eu via, na prática, o que preconizava a lei da Concentração de Reagentes e Velocidade de Reação, que diz que quanto maior a concentração de reagentes, maior a probabilidade de colisões efetivas entre suas partículas e maior a taxa de reação. Em outras palavras, quanto mais fórmulas e teorias naquele maldito livro, maior meu nível de ódio mortal.

A aula mal começava e eu já perdia a vontade de viver. Minhas notas eram horríveis e eu sonhava em poder incendiar aquela escola junto com toda a sua coleção de livros de Física.

Minha única motivação para aguentar essas aulas infernais de Física era o Artur (Artur Austin Umbelino, se você está lendo este post, saiba que eu te amei) aquele cara lindo e romântico que costumava beijar minha mão toda vez que me via. Sem ele, as aulas de Física seriam um desperdício de vida. Artur adorava as aulas de Física e eu adorava passar o tempo olhando para ele. Lembra da Lei da Gravidade? Aquela que surgiu depois que Newton (sem mais nada de útil para fazer) viu uma maçã cair da árvore e concluiu que a Terra tem ter uma força de atração que forçou a maçã a cair no show? Entao, o Arthur era a Terra e eu era a maçã.

Um dia o professor de Física chega alegremente na sala de aula anunciando a nova matéria para aquele dia. Em negrito, escreveu na lousa “RESILIÊNCIA DOS MATERIAIS”. Minha vontade de sair da sala de aula foi imediata, claro. Uma reacao bem tipica da Lei Colombo, aquela garante que corpos com cargas elétricas de mesmo sinal se repelem. Eu e as aulas de Fisica eramos, ambas, cargas negativas.

O professor começou essa aula dizendo que a resiliência era uma propriedade observada pelos cientistas quando estes precisavam medir a capacidade de um determinado material em resistir a uma força externa. Altas temperaturas, choques, exposição a gases tóxicos e pressão atmosférica são algumas das agressões testadas em laboratório que determinariam, por exemplo, a resistência de um objeto. A resiliência não se limita, porém, a avaliar a resistência de um material, mas, fundamentalmente, a medir a resistência adaptativa de cada material. Quando os cientistas medem a resiliência dos equipamentos, eles também querem saber como cada material retém suas propriedades e características iniciais após ser exposto a diferentes agressões.

Artur era bonito e amado por todas as garotas da escola e eu era muito tímida para declarar meu amor por ele. Ele nunca quis nada comigo, mas meu amor por ele permaneceu intacto, inalterável e altamente adaptável às adversidades que um amor não correspondido me impôs. Aceitei de bom grado a minha má sorte sem reclamar, sem me rebelar, sem mostrar qualquer tipo de fragilidade, instabilidade e corrosão. Esse desgosto foi como um caminhão passando por cima de mim, e eu sobrevivi inalterada. A resiliência do amor.

Em Cuba, as pessoas vivem como se estivessem em um laboratório onde se mede a resiliência das pessoas. Em Cuba, as pessoas vivem em cidades onde o saneamento básico é um privilégio, onde frango no almoço é um luxo, onde o dinheiro é cada vez mais escasso e os impostos são abundantes. Em Cuba, a maioria dos supermercados só vende comida enlatada e, se tiver sorte, pode encontrar a tão cobiçada salsicha espanhola enlatada, uma especialidade gastronómica, uma espécie de superstar das gondolas de supermecado. Todo mundo quer tocá-la, mas poucos têm essa chance. Em Cuba, a água é escassa, a eletricidade é cara. Em algumas partes de Havana, podemos ter a estranha sensação de caminhar em qualquer cidade síria bombardeada. Em Cuba, algumas pessoas criam pombos em casa. Bonito, certo? Acontece que eles não criam pombos porque amam animais de estimação. Às vezes eles não têm dinheiro suficiente para pagar por aquelas cobiçadas latas de salsicha espanhola. Barriga vazia, roncando de fome, dói, queima. Se você ja teve a infelicidade de passar alguns dias sem comer, deve saber que a fome queima o estômago.

Todo esse problema em Cuba começou em 1962, no pós-revolução cubana, quando um país conhecido por ser defensor dos direitos humanos e da liberdade, os Estados Unidos da América, decidiu decretar um dos embargos econômicos mais duros de nossa história. Este embargo proíbe qualquer país considerado parceiro econômico dos EUA de comprar ou vender qualquer coisa à Cuba.

Gisela, essa mulher que irradia força e ternura em seus olhos, nasceu em Cuba, trabalha como assistente-administrativo em uma escola em Havana e vive todos os dias a realidade covarde imposta pelo embargo estadunidense e pela incapacidade da política local de encontrar alternativas capaz de garantir uma vida mais digna aos cubanos. Gisela é a manifestação da resiliência.

Quando cheguei em Cuba em 2019, estava pronta para encontrar uma terra arrasada, eu sabia pouco ouquase nada sobre o que os cubanos pensavam sobre a situação deles. Pelas informações que eu tinha sobre Cuba, o que eu realmente esperava era encontrar um povo moralmente devastado. Quando conheci a Gisela, foi toda essa ideia preconcebida que desmoronou. Gisela irradiava otimismo e coragem enquanto eu permanecia cheia de dúvidas. Apesar de todas as dificuldades sofridas pelo povo cubano, Gisela sentia-se profundamente orgulhosa de seu país e se sentia uma combatente revolucionária porque as dificuldades que lhe foram impostas foram o motor motivacional para que ela se superasse e assim mantivesse vivo o sonho de poder viver melhores dias.

Sim, Gisela é uma mulher forte, trabalhadora que não desiste e acho isso uma qualidade enorme porque sinceramente não sei se conseguiria manter minha esperança, meu otimismo quando todas as oportunidades de viver uma vida mais digna vida escorrem pelas minhas mãos.

MESMO ASSIM

Eu me recuso a escrever aqui que essas privações que assolam o povo cubano desde os anos 60 são “imposições de vida”, como muitos em Cuba costumam dizer como se essas imposições fossem criadas por acaso. Não, eles não são. As privações sofridas por Gisela e pelo povo cubano têm pai, mãe e irmão: os EUA, a administração cubana e o silêncio do resto do mundo. Os Estados Unidos ainda não conseguem entender que os valores humanos e a liberdade que tanto defendem para si não são válidos apenas para seus territórios e aliados, mas também são válidos para países como Cuba. O nome disso é hipocrisia.

O governo cubano, por outro lado, parece ter se acomodado à situação, pois não cria condições reais para a emancipação de seu povo e de sua economia. É verdade que Cuba tem mais limitações para aumentar e diversificar sua economia, pois as necessidades básicas da população ainda são um grande problema a ser resolvido. No entanto, o embargo imposto pelos EUA não deve ser visto como o fim de todas as possibilidades. Cuba não pode se permitir cruzar os braços esperando o dia em que o governo Biden reconhecerá o quão cruel é esse embargo para 11 milhões de pessoas. Cuba deve encontrar novas alianças, compromissos e parcerias para superar a brutalidade imposta pelos EUA. Apesar de todas as dificuldades, o governo cubano está fazendo um bom trabalho, mas não o suficiente.

Ser resiliente é realmente incrível. Poder sofrer e, passado o sofrimento, voltar a sorrir, mantendo inalterado o orgulho, a coragem e a esperança de dias melhores. Este é um recurso fantástico, mas com vantagens limitadas. Por trás da força que emana do olhar de Gisela, me pergunto se a resiliência não seria a banalização da angústia que todos sentimos diante das injustiças. Se ao sermos resilientes, não estamos apenas sendo obedientes e aceitando as injustiças sem questioná-las. Se a resiliência não seria a romantização desse sofrimento. De que forma a resiliência do povo cubano não contribui ironicamente para a dramática situação do país?

Afinal, quem ganha com a resiliência das pessoas?

Acho que resiliência boa é aquela que termina em convulsão social.